Deu sinal a trombeta castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso.
Ouviu o Douro e a terra transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso...
É assim que principia o episódio da batalha de Aljubarrota, incluído no canto IV de «Os Lusíadas» e integrado na descrição da história de Portugal que Vasco da Gama faz ao rei de Melinde. Começa hiperbolicamente, num exagero propositado, do poeta que nos dá, no entanto, a imagem perfeita e justa da importância da batalha que ia travar-se em Aljubarrota, e de cujo resultado dependeria a independência de Portugal ou a sua sujeição a Castela - o que bem poderia vir a modificar, e em muito, o curso de muitas coisas.
Mas não nos precipitemos, e vejamos os antecedentes do conflito. Depois da morte de D. Fernando, o Formoso, cuja filha D. Beatriz —com 11 anos apenas— casara com o rei de Castela, Portugal insurge-se contra a ideia de ser governado por um estrangeiro. A arraia-miúda das cidades e vilas e dos campos acompanhada por abastados mercadores e por alguns fidalgos, pois a maioria da nobreza estava com D. Beatriz, aclama D. João, mestre de Avis, defensor e regedor ou regente do Reino. Só ele será o rei de Portugal. Mas aquela sandice de dois alfaiates e dois sapateiros, que tinham alçado o Mestre a Messias de Lisboa —como por troça se dizia— não era «coisa de ir por diante». Entre os que assim «Negam o Rei e a Pátria», contam-se os próprios irmãos de Nuno Álvares que tantos adeptos iria atrair, entretanto, para a causa do mestre de Avis. E Nuno fala assim às gentes — como o Tejo, duvidosas...
««Como?! Da gente ilustre portuguesa
Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?
Como?! Desta província, que princesa
Foi das gentes na guerra em toda a parte,
Há-de sair quem negue ter defesa?
Quem negue a ré, o amor, o estorço e arte
De Português, e por nenhum respeito
O próprio Reino queira ver sujeito?
««Como?! Não sois vós inda os descendentes
Daqueles que debaixo da bandeira
Do grande Henriques, feros e valentes,
encestes esta gente tão guerreira,
Quando tantas bandeiras, tantas gentes
Puseram em fugida, de maneira
Que sete ilustres Condes lhe trouxeram
Presos, afora a presa que tiveram?
««Com quem foram contino sopeados
Estes, de quem o estais agora vós,
Por Dinis e seu rilho sublimados,
Senão co'os vossos fortes pais e avós?
Pois se, com seus descuidos ou pecados,
Fernando em tal fraqueza assi vos pôs.
Torne-vos vossas forças o Rei novo
Se é certo que co'o rei se muda o povo.
««Rei tendes tal que, se o valor tiverdes
Igual ao Rei que agora alevantastes,
Desbaratareis tudo o que quiserdes,
Quanto mais a quem já desbaratastes!
E, se com isto enfim vos não moverdes
Do penetrante medo que tomastes,
Atai as mãos a vosso vão receio.
Que eu, só, resistirei ao jugo alheio!
««Eu só, com meus vassalos e com esta
(E dizendo isto arranca meia espada),
Defenderei da força dura e infesta
A terra nunca de outrem sojugada!
Em virtude do Rei, da Pátria mesta,
Da lealdade já por vós negada,
Vencerei não só estes adversários.
Mas quantos a meu Rei forem contrários!»
«Com toda esta lustrosa companhia
Joane forte sai da fresca Abrantes,
Abrantes, que também da fonte fria
Do Tejo logra as águas abundantes.
Os primeiros armígeros regia
Quem para reger era os mui possantes
Orientais exércitos sem conto
Com que passava Xerxes o Helesponto:
«Dom Nuno Álvares digo, verdadeiro
Açoute de soberbos Castelhanos,
Como já o fero Huno o foi primeiro
Para Franceses, para Italianos.
Outro também famoso cavaleiro,
Que a ala direita tem dos Lusitanos,
Apto para mandá-los e regê-los,
Mem Rodrigues (se diz) de Vasconcelos.
«E da outra ala, que a esta corresponde,
Antão Vasques de Almada c capitão
Que (depois foi de Abranches nobre Conde)
Das gentes vai regendo a sestra mão.
Logo na retaguarda não se esconde
Das quinas e castelos o pendão,
Com Joane, Rei forte em toda parte,
Que escurecendo o preço vai de Marte.
«Estavam pelos muros, temerosas
E de um alegre medo quase frias,
Rezando, as mães, irmãs, damas e esposas,
Prometendo jejuns e romarias.
Já chegam as esquadras belicosas
Defronte das imigas companhias,
Que com grita grandíssima os recebem;
E todas grande dúvida concebem.
«Respondem as trombetas mensageiras,
Pífaros sibilantes e atambores;
Alfores volteiam as bandeiras.
Que variadas são de muitas cores.
i:,ra no seco tempo que nas eiras
Ores o fruto deixa aos lavradores;
l.ntra em Astreia o Sol, tio mês de Agosto;
Baco das uvas tira o doce mosto.
«Deu sinal a trombeta castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso;
Ouviu o Douro e a terra transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães que o som terríbil escuitaram.
Aos peitos os filhinhos apertaram.
«Quantos rostos ali se veem sem cor.
Que ao coração acode o sangue amigo!
Que, nos perigos grandes, o temor
E maior muitas vezes que o perigo;
E, se o não é, parece-o, que o furor
De ofender ou vencer o duro imigo
Faz não sentir que é perda grande e rara
Dos membros corporais, da vida cara.
«Começa-se a travar a incerta guerra:
De ambas partes se move a primeira ala;
Uns, leva a defensão da própria terra,
Outros, as esperanças de ganhá-la.
Logo o grande Pereira, em quem se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala:
Derriba e encontra, e a terra enfim semeia
Dos que a tanto desejam, sendo alheia.
«Já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam;
Espedaçam-se as lanças, e as frequentes
Quedas co' as duras armas tudo atroam.
Recrescem os imigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca.
«Eis ali seus irmãos contra ele vão
(Caso feio e cruel!), mas não se espanta,
Que menos é querer matar o irmão
Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta.
Destes arrenegados muitos são
No primeiro esquadrão, que se adianta
Contra irmãos e parentes (caso estranho!),
Quais nas guerras civis de Júlio e Magno.
«Õ tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos:
Se lá no Reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos.
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes.
«Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,
Tantos dos inimigos a eles vão!
Está ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceita está o fortíssimo leão.
Que cercado se vê dos cavaleiros
Que os campos vão correr de Tetuão:
Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso,
Torvado um pouco está, mas não medroso
«Com torva vista os vê, mas a natura
Ferina e a ira não lhe compadecem
Que as costas dê, mas antes na espessura
Das lanças se arremessa, que recrescem.
Tal está o cavaleiro, que a verdura
Tinge co'o sangue alheio; ali perecem
Alguns dos seus, que o ânimo valente
Perde a virtude contra tanta gente.
«Sentiu Joana a afronta que passava
Nuno, que, como sábio capitão,
Tudo corria e via e a todos dava,
Com presença e palavras, coração.
Qual parida leoa, fera e brava,
Que os filhos, que no ninho sós estão,
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,
O pastor de Massília lhos furtara,
«Corre raivosa e freme e com bramidos
Os montes Sete Irmãos atroa e abala:
Tal Joane, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode à primeira ala:
- «Ó fortes companheiros, ó subidos
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,
Defendei vossas terras, que a esperança
Da liberdade está na vossa lança!
«Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro,
Que entre as lanças e setas e os arneses
Dos inimigos corro e vou primeiro;
Pelejai, verdadeiros Portugueses»!
Isto disse o magnânimo guerreiro,
E, sopesando a lança quatro vezes,
Com força tira, e deste único tiro
Muitos lançaram o último suspiro.
«Porque eis os seus, acesos novamente
Duma nobre vergonha e honroso fogo.
Sobre qual mais, com ânimo valente,
Perigos vencerá do márcio jogo,
Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente;
Rompem malhas primeiro e peitos logo:
Assim, recebem junto e dão feridas
Como a quem já não dói perder as vidas.
«A muitos mandam ver o Estígio lago.
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava
O Mestre, morre ali, de Santiago,
Que fortissimamente pelejava;
Morre também, fazendo grande estrago.
Outro Mestre cruel, de Calatrava;
Os Pereiras também arrenegados,
Morrem, arrenegando o Céu e os Fados.
«Muitos também do vulgo vil, sem nome.
Vão, e também dos nobres, ao profundo,
Onde o trifauce Cão perpétua fome
Tem das almas que passam deste mundo.
E, porque mais aqui se amanse e dome
A soberba do imigo furibundo,
A sublime bandeira castelhana
Foi derribada aos pés da lusitana.
«Aqui a fera batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A multidão da gente que perece
Tem as flores da própria cor mudadas.
Já as costas dão e as vidas; já falece
O furor e sobejam as lanhadas;
Já de Castela o Rei desbaratado
Se vê, e de seu propósito mudado.
«O campo vai deixando ao vencedor,
Contente de lhe não deixar a vida;
Seguem-no os que ficaram, e o temor
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
Encobrem no profundo peito a dor
Da morte, da fazenda despendida,
Da mágoa, da desonra e triste nojo
De ver outrem triunfar de seu despojo.
«Alguns vão maldizendo e blasfemando
Do primeiro que guerra fez no mundo;
Outros a sede dura vão culpando
Do peito cobiçoso e sitibundo,
Que, por tomar o alheio, o miserando
Povo aventura às penas do Profundo,
Deixando tantas mães, tantas esposas,
Sem filhos, sem maridos, desditosas.
«O vencedor Joane esteve os dias
Costumados no campo, em grande glória;
Com ofertas, depois, e romarias.
As gradas deu a Quem lhe deu vitória.
Mas Nuno, que não quer por outras vias
Entre as gentes deixar de si memória
Senão por armas sempre soberanas,
Para as terras se passa transtaganas»
Canto IV, Est. 15-19; 23-45
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