Padeira de Aljubarrota

Não é fácil escrever algumas páginas exatas e concretas sobre a Padeira de Aljubarrota, mas sem dúvida que ela representa uma das tradições populares arraigadamente preservadas pelo povo português.

O laborioso historiador Herculano, resume o seu depoimento nos seguintes termos:

«Se a padeira de Aljubarrota é um mito, uma invenção popular do século XV, nem por isso a desprezemos. Um povo que dá a uma mulher ódio bastante contra os opressores estranhos para haver de matar a sangue frio sete desses inimigos; um povo que assim simbolizava o seu modo de sentir a tal respeito devia saber sustentar a independência nacional. Todavia não seremos nós que desterremos para o mundo dos fantasmas a famosa Brites de Almeida, forneira de Aljubarrota.»

Diz a tradição que esses sete inimigos foram executados com a pá de fornear.

Referem vários autores que Brites de Almeida, ou Beatriz de Almeida, era natural de Faro. Segundo uns, era feia, alta e corpulenta, com força varonil, um verdadeiro virago de olhos muito pequenos, donde lhe veio a alcunha de Pisqueira. Acrescentam outros, ter revelado desde criança um génio irascível, temerário e desordeiro. No romance «A Padeira de Aljubarrota», de Faustino da Fonseca, é apresentada como mulher de certa beleza física. Pinho Leal diz que ela tinha em cada uma das mãos um dedo supra-numerário (hexadáctila).

Seu pai era estalajadeiro e possuía uma casa de pasto em Faro, onde a moçoila trabalhava, servindo os fregueses e os hóspedes. O filho do alcaide de Faro, que frequentava a estalagem, requestava a rapariga e não encontrando facilidades no seu desígnio, procurou conquistá-la pela força; vendo-se ofendida e desrespeitada, atirou-lhe à cabeça uma bilha de barro, que bastante o feriu. Brites de Almeida com medo de qualquer perseguição saiu de Faro e fugiu para Lisboa. Tendo-lhe mais tarde morrido o pai, regressou à estalagem de que era a herdeira e arrendou uma quintarola, parece que em Loulé, onde passou a viver.

Por motivo de amor, que se conta de várias maneiras, lutou com um seu pretendente e como era forte e decidida, matou-o nessa briga. Para evitar a prisão fugiu novamente, num barco, mas o vento levou-o para o mar largo onde ficou cativa dum mouro; já se encontravam na embarcação dois portugueses também prisioneiros. O muçulmano, dono do barco, levou-a ao mercado das mulheres em Argel, aí foi vendida a um mouro rico, referindo outros que se destinava ao próprio sultão. Ao que corre impresso, resistiu a muita violência, defendendo-se com coragem e sorte, tendo passado por grandes lances e sobressaltos. Os pormenores do projeto da sua fuga do harém imperial devem estar bastante fantasiados no romance de Faustino da Fonseca. Brites de Almeida conseguiu libertar-se com mais dois portugueses que estavam ao serviço do mesmo senhor e disfarçada em traje mourisco, embarcou numa lancha, tendo chegado à Ericeira ao fim de quatro dias de tormentosa viagem.

Receando que a reconhecessem e lhe pedissem contas da morte que tinha feito, vestiu-se de homem e começou a fazer serviço de almocreve. A sua vida de condutora de bestas de carga foi também bastante acidentada. Neste seu novo mester envolveu-se, ou foi envolvida, em várias desordens e tendo sido acusada de outro morticínio, a Justiça tomou conta dela, encarcerando-a em Lisboa. Por se não ter provado o crime, ou por qualquer outro motivo, foi posta em liberdade. Depois de tantas agitadas aventuras, esta heroína popular foi parar a Aljubarrota, onde se ajustou como criada duma padeira. Segundo narra Faustino da Fonseca. Brites de Almeida deu notícias à sua ama do paradeiro do marido dela, revelando-lhe ter sido feito também cativo por piratas argelinos. Grata por esta revelação, a ama afeiçoou-se à serva e, quando morreu, Brites de Almeida herdou o forno, passando assim à História com o nome de Padeira de Aljubarrota.

Já antes de ir para esta vila estremenha, Brites de Almeida havia manifestado fervor patriótico e ódio aos castelhanos. Diz-se que apedrejou, junta com a turba desordenada, o Paço de S. Martinho, em Lisboa, quando do ilícito casamento de D. Fernando; consta ainda que vibrou de indignação contra Leonor Teles ao ter conhecimento do seu adultério e que aplaudiu o Mestre de Avis quando este matou o Conde de Andeiro. Tinha Brites de Almeida uns quarenta anos quando se deu a Batalha de Aljubarrota; não entrou propriamente nesta batalha, pois foi após a vitória que a tradição assinala o seu patriótico feito. A padeira não estava no campo da refrega; estaria em Aljubarrota e a gloriosa batalha deu-se a onze quilómetros desta povoação. Relata Eduardo Marrecas Ferreira na sua monografia «Aljubarrota» (1931):

«Durante a batalha de Aljubarrota, Brites de Almeida, por entre o povo da vila, assistia ansiosa ao desenrolar da batalha de qualquer ponto elevado das cercanias, e muito folgou ao ver a derrota dos espanhóis.»


Foi após a vitória que os soldados castelhanos, na sua fuga desordenada, passaram pela povoação de Aljubarrota e neste transe a padeira empunhando a sua pá, matou uns soldados e perseguiu outros. Segundo outros historiadores, os sete castelhanos que ela matou estavam escondidos dentro do seu forno. A este respeito escreve Pinho Leal:

«Consta que os tais sete castelhanos, vendo tudo perdido, e para escaparem à geral carnificina, achando a casa da Pisqueira abandonada (por a padeira andar entretida a caçar castelhano) se foram esconder dentro do forno. Foi ela ali dar com eles e agarrando na pá— quantos vivos rapuit, omnes esbarrigavit.»
A «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» narra o episódio histórico do seguinte modo:

«Na tarde da batalha de Aljubarrota, já derrotados os castelhanos, o povo perseguiu os fugitivos e Brites de Almeida capitaneou um troço de populares que se dedicaram a essa tarefa; diz a tradição que a padeira ao cair da noite encontrou escondidos no forno, que estava apagado, sete castelhanos que tentaram fugir ao populacho e que os matou.»

Verifica-se que o povo de Aljubarrota se insurgiu contra os castelhanos e se a padeira foi um mito, não o foi o povo da região. Com realidade ou sem ela. o nome de Brites de Almeida, simboliza o ardor patriótico do povo de Aljubarrota, porque não era uma mulher sozinha, por muito destemida que fosse, e mesmo com seis dedos em cada mão, que podia enfrentar tantos fugitivos. Perto de Alcobaça. na ponte de Chiqueda, os castelhanos, na debandada, também foram perseguidos pelo povo. Diz Fr. Manuel dos Santos que nesta ponte, entre outros fugitivos, foi morto um fidalgo cuja mulher que nesse mesmo local foi presa era cuvilheira (Mulheres encarregadas de limpar e perfumar os vestidos dos reis) ou cubiculária-mor do rei inimigo.

Alexandre Herculano que esquadrinhou o assunto, referindo-se à padeira escreveu :

«Este sucesso tradicional, quer real, quer fabuloso, tem em qualquer dos casos, um valor histórico, porque é um símbolo, uma expressão da ideia viva e geral aos portugueses daquele tempo, o ódio ao domínio estranho, o rancor com que todas as classes de indivíduos guerreavam aqueles que pretendiam sujeitá-los a esse domínio.»

Referem alguns escritores, possivelmente com fantasia, que a atestar esse ódio aos invasores existiu em Aljubarrota uma pequena calçada formada com os ossos de castelhanos mortos na batalha, calçada que foi desaparecendo; e diz-se que para manterem essa calçada por mais tempo foram colocadas ossadas de animais nos sítios mais danificados.

Segundo Herculano, a memória escrita mais antiga acerca da padeira de Aljubarrota é aquela a que alude Fr. Manuel dos Santos. Diz este que Fr. Francisco Brandão, no ano de 1642. isto é, dois séculos e meio depois da batalha, "fez tirar um sumário de testemunhas na vila de Aljubarrota em que juraram as pessoas mais antigas daqueles sítios e de qual consta ter-se aí conservado inalterável a tradição daquele sucesso, guardando-se a pá nos Paços do Concelho, a qual era de ferro com um cabo mais moderno de pau».

Rezam as crónicas que a pá foi escondida numa das paredes dos Paços do Concelho quando mais tarde os espanhóis nos dominaram e embora insistentemente procurada e requisitada, nunca a descobriram, nem lhes foi entregue, como tanto desejaram, alegando-se sempre não se saber que destino tinha levado.

A pá esteve assim oculta durante os sessenta anos do domínio filipino e só tornou a aparecer à luz do dia depois da gloriosa revolução que aclamou D. João IV, Rei de Portugal.

Ainda hoje. em Aljubarrota, se mostra essa pá ao turista que a deseje ver.

O digno professor primário de Aljubarrota, Sr. João António Dias, escreveu no número especial do «Ecos do Alcoa», de 14 de Agosto de 1935 (550º aniversário da Batalha de Aljubarrota), que Mouzinho de Albuquerque - o herói de Chaimite e Preceptor do Príncipe Real D. Luís Filipe e tio Infante D. Manuel - quando uma vez passou em Aljubarrota acompanhado destas altas entidades, então ainda crianças, lhes fez uma alocução patriótica, evocando um passado glorioso, acabando todos por beijar a pá com enternecido respeito.

BERNARDO VILLA NOVA